Não gosto das tais auto-promoções, mas como esse blog anda às traças, aproveito para postar uma matéria que fiz "direto" de Belém para o Brasil de Fato - feliz estréia como "breve correspondente". Maneira de falar, porque não tive como escrever no Pará e redigi tudo em São Paulo. Quem me conhece há mais tempo e sabe das minhas "aspirações jornalísticas", deve imaginar o quanto tudo foi divertido para mim. Não ficou lá essas coisas, mas deu para enganar, como se diz.
A arte como luta política
Mostrar o camponês como um produtor de cultura, e não apenas como mero espectador, foi um dos objetivos da Semana de Cultura Brasileira e da Reforma Agrária, realizada de 10 a 16 de novembro no Cultural Tancredo Neves (Centur), em Belém, no Pará. O encontro, promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) reuniu cerca de 700 participantes de vários estados, que discutiram o acesso à cultura e a produção artística nos acampamentos e assentamentos da Reforma Agrária.
Na avaliação de Maria Raimunda César, da coordenação do MST no Pará, a Semana conseguiu pautar um diálogo com a sociedade que vai além da valorização do trabalhador no campo, reconhecendo o camponês como um sujeito que também produz cultura, conhecimentos e saberes. "Não é comum ver trabalhadores e trabalhadoras sem terra ocupando o centro da cidade e discutindo cultura. É mais concebível para a sociedade a gente estar reivindicando do que reunido para socializar cultura e conhecimento. Aos poucos, vamos conseguindo romper essa trincheira que afasta os sujeitos do campo do mundo do conhecimento, todo esse preconceito".
Além da importância de divulgar a produção cultural dos camponeses, Maria Raimunda destaca a importância de realizar uma Semana de Cultura em Belém, considerada a capital da Amazônia. A região, na sua avaliação, vem sofrendo com o avanço de grupos interessados em lucrar sobre a cultura dos povos locais, transformando os costumes e as tradições em mercadoria. "É uma diferença muito sutil entre o processo de comercialização da cultura e a valorização desses sujeitos produtores de cultura. O mercado e os meios de comunicação transformam o carimbó e o lundu, nossas danças e a nossa alimentação em um grande espetáculo para inglês ver, para turista ver. E de fato você tira do modo de vida dessas pessoas, de toda essa construção cultural, as possibilidades desses sujeitos se elevarem, continuarem se construindo", explica a sem terra.
Segundo o professor de Histórida da Arte da Universidade de São Paulo (USP), Francisco Alambert, que participou do evento, a arte e a cultura devem ser encaradas como luta política, pois são instrumentos necessários para vencer a ideologia inculcada pela indústria cultural durante séculos. De acordo com ele, a história já mostrou a importância da produção artística e cultural para as conquistas socialistas, como a Revolução Soviética, em 1917, e na Revolução Chinesa, de 1949. “Os grandes processos revolucionários do século XX entenderam que a luta revolucionária deve estar em todos os lugares ao mesmo tempo, inclusive no terreno das artes, da cultura e da produção simbólica”, avalia.
O professor, portanto, defende que a luta contra o latifúndio não deve estar separada da luta pelo controle da produção cultural, e alerta para a necessidade dos movimentos sociais disputarem o domínio do imaginário popular e o acesso aos bens simbólicos. Para isso, afirma, é necessário socializar os meios de produção cultural, para que sirvam aos interesses coletivos. "A arte só se produz coletivamente. O autor deve ser o produtor, e o produtor deve ser ator".
A Semana de Cultura contou com debates com militantes do MST, representantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do governo do Estado do Pará e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) professores e jornalistas. Foram realizadas, ainda, oficinas sobre diversos temas, como cinema, dança, rádio, jornal impresso, customização e máscaras, entre outros, além de noites culturais, com cantores, escritores, poetas e grupos de dança e de teatro e tributos especiais ao compositor Waldemar Henrique e ao músico João do Vale.
Rompendo cercas
Uma das atrações foi o grupo Rompendo Cercas, do Assentamento Nova Conquista, de Açailândia, no Maranhão. A peça contou a história de um casal de camponeses que, procurado por sojicultores, decidiu não vender suas terras nem acreditar nas promessas de que a vida na cidade seria melhor.
A integrante do grupo Martha Denise de Oliveira Silva, de 17 anos, relata que o Rompendo Cercas surgiu na própria escola do assentamento, onde foram realizadas as primeiras apresentações, a partir da necessidade de denunciar o modelo de latifúndio e de exclusão no campo. "A gente escolheu esse nome porque está justamente rompendo cercas, passando uma cultura de resistência contra a cultura de massa. É mais um instrumento de luta", afirma.
Da escola do assentamento, eles passaram a se apresentar também em atividades do MST, inclusive em outros estados. São os 14 adolescentes do grupo que decidem o que vão encenar e quem assumirá cada papel, a partir das discussões que serão travadas em cada encontro. No histórico já são seis peças, pautando temas como o avanço dos monocultivos e do neoliberalismo e a valorização da mulher.
As aulas dificultam uma rotina de ensaio, mas isso está longe de ser o maior empecilho. A falta de recursos ainda é o que mais pesa. O Movimento Sem Terra auxilia nas viagens mas, ainda assim, não há verbas para comprar figurinos, acessórios e outros materiais. A comunidade tenta levar um Ponto de Cultura para o assentamento de Açailândia mas, enquanto isso não acontece, as soluções vêm por meio do improviso, como ocorreu em Belém. "Nessa peça eu fiz o papel do agricultor, então eu peguei a roupa do meu pai, que trabalha na roça", relata.
As atividades da Semana, segundo Martha, também auxiliarão o grupo, já que os jovens participaram de oficina de dança, máscaras, customização e música e poderão repassar o conhecimento para os demais integrantes. "Eu aprendi a dançar carimbó, que eu não sabia. A gente vai conhecendo pessoas, trocando experiências, é bom por conta disso também".
A jovem atriz, que pensa em seguir carreira no teatro, percebe que as pessoas têm gostado do trabalho do grupo, mas afirma que o mais importante é a mensagem de resistência transmitida em cada peça. "A gente não espera aplausos, a gente espera que o público possa assimilar a idéia que queremos passar".
O pai de Martha, o educador Luís Antonio Lima e Silva, que ajuda a coordenar os adolescentes, acredita que o teatro dentro das áreas da Reforma Agrária contribui para a conscientização dos trabalhadores rurais, tendo uma importância ainda maior para os jovens, que encontram, assim, uma forma de produzir cultura. "Isso ajuda a formar tantos os integrantes do grupo como os trabalhadores. É um instrumento de conscientização e de transformação da sociedade e também uma forma de se contrapor à cultura de massa, que ainda está cheia nos assentamentos por meio da televisão e do rádio", explica.
Silva lamenta a falta de incentivo para a profissionalização dos jovens nos acampamentos e assentamentos que, segundo ele, estão repletos de talentos não apenas no teatro, mas também em outras artes, como a dança e a pintura. "A gente sabe que essa cultura de resistência não recebe incentivo nenhum por parte do poder público. Então, vamos fazendo da forma que dá, com muita dificuldade. E quando a gente vê o resultado, acredita que vale a pena".
Primeira vez no cinema
A terça-feira do dia 11 de novembro entrará para a história do sem terra Manuel Pereira de Araújo que, neste dia, aos 61 anos, foi ao cinema pela primeira vez. Ele assistiu ao filme "Milton Santos: A Globalização vista do lado de cá", de Silvio Tendler, exibido durante a Semana de Cultura, que aborda a importância do intelectual para os movimentos sociais e para a conquista do poder popular.
Natural do Piauí e há mais de 20 anos no Pará, Araújo garante que a vida sofrida de trabalhador rural não permitiu muito acesso à cultura. De Belém mesmo, conhece apenas alguns pontos. "Você vê, com 61 anos nunca tinha ido ao cinema. É trabalho, trabalho, trabalho, não tem tempo para mais nada".
Sobre sua estréia como espectador no cinema, o sem terra se mostra orgulhoso com a conquista. "Foi muito bom, porque a gente fica mais bem-informado, a gente vê na tela o conhecimento. É bom pegar uma coisa na tela e passar para os que não vieram".
Além de ter participado da oficina de cinema durante a Semana, o sem terra participou ativamente de todo o encontro, inclusive da Marcha de encerramento no centro da capital paraense no domingo (16), apesar de suas dificuldades para caminhar. E garante que, sempre que pode, vai aos encontros do MST, mesmo se forem longe do acampamento Olga Benário, em Aracá, a 50 quilômetros de Belém, onde vive atualmente. Para ele, é a forma de contribuir para a mudança na sociedade. "Tem que participar das coisas, porque a gente coloca os políticos lá e não adianta, eles esquecem da gente, fazem como se nunca tivessem nos visto".