Mostrando postagens com marcador literatura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador literatura. Mostrar todas as postagens

23.6.17

Bloomsday

Sexta-feira foi dia de Bloomsday ao redor do mundo, quando se celebra a jornada de Leopold Bloom, personagem famosão de Ulysses de James Joyce.

A Casa das Rosas em São Paulo fez um m evento com palestras, música e dança irlandesa (e Guinness, mas por 32 reais não tem condições). Claro que eu estava lá. Foi o trigésimo evento do tipo em São Paulo. Voltei pra casa com tanta coisa na cabeça e no coração que precisei despejar umas linhas. Joguei no Facebook, mas quis reproduzir por aqui também.

"De um Bloomsday, na Casa da Rosas, com James Joyce, Irish dance, Irish music e vários filmes passando na minha cabeça e no meu coração, saio direto pra uma caminhada na Paulista, tentando lidar com um monte de sentimentos. E ali na famosa avenida então eu vejo um cara vestido de punk tipo anos 70, um senhor vestido de Chaves, um menino vestido de Michael Jackson, várias pessoas indo ou vindo de uma festa junina, um maluco tocando AC/DC, hippies vendendo muamba e todo mundo já naquela vibe Parada Gay.
Aí me dei conta que nunca saí de São Paulo quando fui pra Dublin e que nunca saí de Dublin, mesmo tendo voltado pra São Paulo. E voltar se torna um verbo quase inútil porque como assim voltar de um lugar se a gente nunca saiu dele. E de qual "eu" me refiro mesmo, quando vamos mudando a cada pessoa, paisagem ou experiência que aparece.

Só queria mesmo um trem-bala que me transportasse entre essas duas cidades em um piscar de olhos pra eu comer coxinha numa padoca de esquina e, cinco minutos depois, tomar Guinness e olhar pro Liffey River.

Da próxima vez que perguntarem, São Paulo ou Dublin, vou perguntar de volta se dá pra ser as duas, já que ambas grudaram em mim e, por mais que eu tente, parece que nunca vou me livrar."

17.1.14

o velho e o mar


Imagem: Pinterest

"É tolice não ter esperança, pensou. Além de que suponho que é pecado. Não penses no pecado. Já sem ele há problemas de sobra. E do pecado não tenho entendimento".

"Não tenho dele entendimento, e até me parece que não acredito nele. Talvez fosse pecado matar o peixe. Julgo que terá sido, embora o tenha morto para viver e dar de comer a muita gente. Mas então tudo é pecado. Não penses no pecado. É tarde demais para isso, e há gente paga para pensar nele. Eles que pensem. Tu nasceste para pescador, como os peixes para ser pescados. S. Pedro era pescador, como o pai do grande DiMaggio".

 Gostava, porém, de pensar em todas as coisas em que se implicava e, uma vez que não havia que ler e não tinha rádio, pensava muito, e continuou a pensar no pecado. "Não mataste o peixe só para viver e vendê-lo para ser comido. Mataste-o por amor-próprio e porque és um pescador. Amáva-lo quando estava vivo, e ama-lo depois de morto. Se o amas, não é pecado matá-lo. Ou será mais?"
- Tu pensas demais, velhote -- disse em voz alta.

"Mas gozaste com a morte do *dentuso*, pensou. Vive de peixe como tu. Não é dos que andam aos restos, nem um apetite ambulante como alguns tubarões são. É belo e nobre e não conhece o medo".
- Matei-o em legítima defesa -- exclamou. -- E matei-o muito bem.

 "Além de que, pensou, tudo mata, de uma maneira ou de outra. Pescar mata-me, exactamente como me mantém vivo. O rapaz mantém-me vivo. Não devo iludir-me demais".

***

Uma das oportunidades que as ~férias~ prolongadas me dão é a leitura. Desde os últimos meses tenho lido mais livros do que em anos inteiros. Consegui, assim, desentocar muita coisa da estante, como "O Velho e o Mar", do Hemingway. Havia lido durante a faculdade, emprestado de uma biblioteca, mas uma promoção querida na Fnac há algum tempo me deu a chance de ter minha própria edição em casa. Amo bibliotecas e a ideia de frequentá-las, mas ter uma porção de livros do Hemingway em casa dá uma satisfação meio inexplicável. Com esse já são seis :)

Li todinho no sábado e pude não só matar as saudades do Hemingway como comprovar, pela milhonésina vez, que a leitura é uma atividade imensamente prazerosa. Acho que é daquelas coisas que se gosta tanto que se reserva para os momentos mais especiais.

Ainda não tenho meu kindle, mas quem tiver coisa parecida (ou mesmo gosta de ler no computador) pode acessar uma versão digital aqui.


16.12.13

julie & julia



Já comentei, em vários posts, sobre minha mais recente mania, a culinária. Tudo começou com uma salada mexicana no ano passado e, desde então, só aumenta meu repertório de receitas. Já fiz até escondidinho de carne seca, brownie e kafta, coisas que eu considero de ~nível superior~ na arte da cozinha. Não ficaram perfeitos, mas com a prática tenho certeza de que posso melhorar.

Coleciono uma longa lista de receitas em uma página do Evernote  - as que faço marco com itálico. Daí que essa minha "saga" particular ao longo do ano me lembrou o filme Julie & Julia, que assisti há alguns anos. Não gostei tanto assim na época, talvez por não estar tão envolvida com o tema como agora. O filme teve como origem um livro, escrito pela Julie Powell, que lançou a si mesma o desafio de preparar as 524 receitas do livro da Julia Child, "Mastering the Art of French Cooking". Descobri o livro em um sebo pela internet e, no mesmo dia em que fui buscá-lo, comecei a ler.

É uma delícia de leitura. Primeiro porque a Julie Powell escreve muito bem. Em segundo porque, além de as histórias serem ótimas, a Julie - pelo menos nessa fase da sua vida - tem um cotidiano absolutamente normal. Com 29 anos, sente aquela pressão (pessoal e social) para ter um filho. Também trabalha em um emprego chato (como secretária em uma entidade governamental), enfrenta problemas diários (panes no metrô, supermercados fechados, falta de energia elétrica), , fala palavrões, tem dor nos pés e pouca grana para comprar os ingredientes mais phynnos das receitas... Difícil não se identificar - eu me vi dezenas de vezes, principalmente por seus comentários sarcásticos e irônicos (que lembram meus próprios pensamentos em situações semelhantes).

O livro é um ótimo entretenimento, mas consegue ter um efeito maior. É motivador. A "moral" da história toda é a ideia de recomeço. Julie Powell não acreditava em grandes coisas da vida quando decidiu preparar todas as receitas da Julia Child. E a Julia hild, em consequência, não faz o tipo figura caricata, daquelas que "nasceram" para o sucesso. Ela só foi descobrir seu talento aos 39 anos, quando decidiu fazer um curso de chef para preencher as horas vagas na França. Ambas aprenderam, cada uma a seu tempo e a seu jeito, que a vida poderia oferecer muito mais do que a rotina nos impõe. É só misturar os ingredientes certos e testar, testar incansavelmente, até a mágica acontecer - uma comida gostosa no prato e a sensação de que sempre podemos avançar e nos desvendar um pouquinho mais.

5.12.13

as ruas

Um dos meus passeios prediletos aqui em São Paulo é ir até a Fnac fuçar nos balaios.

Tenho uma certa tara por balaios desde meus tempos de visitante da Feira do Livro em Porto Alegre. Hoje sou mais seletiva - não compro qualquer coisa só porque custa R$ 2, como fazia no passado  -, mas ainda assim sempre consigo boas aquisições - desde clássicos até livros menos conhecidos e difíceis de encontrar. Aliás, acho que uns 90% do que comprei na Fnac até hoje foi desse jeito, catando "preciosidades" entre livros de informática obsoletos e best-sellers de gosto ainda mais duvidoso do que os consagrados.

Há uns dois meses tirei a sorte grande. Comprei dois livrinhos do George Simenon por R$ 5 - que o caixa me disse estarem custando R$ 15 um dia antes - e "Alma Encantadora das Ruas", do João do Rio, também pelos módicos R$ 5.


Eu li uma crônica do João do Rio durante a faculdade e fiquei encantada. Versava exatamente sobre a alma e os diferentes tipos de rua - é a primeira crônica que compõe esse livrinho. Fiquei em dúvida na hora de comprar - tenho tentado reduzir despesas e coisas físicas - mas livros bons por esse preço, convenhamos. Posso transferir a pão-durice e o desapego para outros itens.

A rua é o cerne do livro e das ideias do João do Rio, mas ele vai além: descreve os tipos da época - quase todos marginais -, as profissões, os costumes, as artes e até mesmo as prisões. O único aspecto não tão bom do livro é que, como a escrita (apesar de brilhante) tem aquele estilo rebuscado e um tanto "rocambolado" das antigas, torna-se meio cansativo ler o livro curtinho em uma só pegada - doses homeopáticas funcionam melhor. Pelo menos na minha opinião, é claro, um tanto maníaca por objetividade.

Como a internet é uma coisa linda dá para ler online nesse link.

João do Rio era um dos pseudônimos usados pelo Paulo Barreto, figura importante do Rio de Janeiro no começo do século passado. Ao ler a curta biografia no livro descobri que pelo menos 100 mil pessoas compareceram ao seu enterro. É gente pra caramba. Mas ao conhecer um pouco mais da sua obra é possível ver porque era tão famoso. Era um jornalista - e um repórter - daqueles. Dos melhores. De se invejar da primeira até a última letra de um texto. Sem falar que João do Rio é um dos nomes mais lindos que um escritor pode ter.


Detalhe curioso: no livro ele comenta de algumas de suas influências, dentre elas Balzac. Mas eu sabia disso antes mesmo de ler as crônicas. Em "História dos Treze", que li há alguns anos, já aqui em São Paulo, Balzac divaga lindamente, em um dos textos, sobre as ruas de Paris.  Na hora lembrei do texto do João do Rio e descobri de onde vinha sua inspiração, já que as ideias são muito semelhantes. "A Alma Encantadora das Ruas" só veio confirmar.

ps: revirando o blog, dias depois de escrever o post, dei de cara com outro que eu havia escrito justamente sobre esse livro do Balzac, aqui.

12.11.13

amor que quebra os ossos

"Por que stop? Por medo de começar as fabricações, são tão fáceis. Tira-se uma ideia de algum lugar, um sentimento de outra estante, amarra-se tudo com a ajuda de palavras, cadelas negras: e resulta que te amo. Total parcial: te amo. Total geral: te amo. Muitos amigos meus vivem assim, sem falar de um tio e dois primos, convencidos do amor-que sentem-por-suas-esposas. Da palavra aos atos, meu amigo; em geral, sem verba não há comida. Aquilo a que muita gente chama amar consiste em escolher uma mulher e casar com ela. Escolhem, juro, já os vi. Como se se pudesse escolher no amor, como se amar não fosse um raio que quebra os ossos e nos deixa paralisados no meio do pátio. Tu dirás que eles escolhem porque-a-amam; creio que é o contrário. Não se pode escolher Beatriz, não se pode escolher Julieta. Não podemos escolher a chuva que nos vai encharcar até os ossos quando saímos de um concerto."

Não é por nada que tanta gente elogia esse livro, "O Jogo da Amarelinha", de onde tirei o trecho acima. Passagens bonitas demais, como essa aí. Acho que foi a definição de amor com que mais concordei até hoje. Dessas frases de se lembrar do nada, no meio da noite.

8.7.13

limites

Encarar nossos limites geralmente não é das coisas mais agradáveis. Como vivemos em um mundo competitivo, onde todos correm como loucos atrás de um tal de sucesso, fica difícil se manter alheio a esse clima de podemos-tudo-só-falta-esforço.

Meu inglês, coitado, é a maior prova das minhas limitações. Apesar de anos de estudo, dedicação, cuca fundindo atrás dos melhores métodos de estudo, a verdade é que a coisa não vai. Notei melhoras significativas desde que vim para São Paulo, onde adotei, graças à grana curta, um estudo 100% by myself. Mas ainda assim, o ritmo é uma tartaruga com dor nas pernas.

Este ano consegui romper uma barreira importante, li meu primeiro livro todo em inglês, "The Secret Garden". A história é linda e a narrativa tem um tom de complexidade ok, então deu para acompanhar as peripécias das crianças tranquilamente.

A segunda missão, nesse sentido, se mostrou impossível. Depois de meses protelando o início da leitura desse livro lindo do Edgar Allan Poe (que comprei por magníficos 15 reais na Fnac), resolvi tentar um capítulo mais curto. Não saí da primeira página (ou da metade dela, para ser sincera). O senhor Poe ainda é poético demais para mim (pelo menos em inglês).

Ok, não consegui, sem dramas. Mais um motivo para me aventurar mundo afora em um intercâmbio. De repente, depois disso, o negócio fica mais fácil.

17.10.12

calhamaço do momento

Uma ideia mais viva ali parece uma grosseria, tal é o nosso costume com as palavras sem relevo. Infeliz daquele que inventa ao falar. (Faublas)

Depois de me enrolar, enrolar e enrolar, finalmente comecei a ler "O Vermelho e o Negro", do Stendhal. A edição é bonitona. Velha, de 1971, com uma ortografia jurássica, mas ainda assim linda. Havia comprado em um sebo no centro no ano passado, durante o intervalo de um seminário a que eu assistia. Comprei junto com Madame Bovary, mas esse li ainda no ano passado, por ser mais fino e me despertar mais curiosidade.

Já li metade do calhamaço do Stendhal. Para os franceses, sem dúvida, deve ser um de seus romances mais importantes, até porque tem muitas referências sobre a época do Napoleão. Se eu soubesse mais sobre esse período histórico talvez achasse mais interessante, mais “revelador” da sociedade, todos os adjetivos que costumam ser associados a esse livro. Até agora achei bom – embora em algumas partes a leitura se torne bastante arrastada, principalmente quando começam a falar sobre os pormenores da Igreja. No geral, não me conquistou ainda.

Quem sabe a parte final consegue. De resto, tenho me esforçado para ficar menos tempo pendurada na internet e mais focada em leituras. É um bom projeto e, por enquanto, tem dado certo.

5.7.11

há meio século


Impossível ler e não se inspirar, querer voar.


2.7.11

noite assim, meio nostálgica

"E teríamos rido
de tal maneira que os transeuntes
achariam perigosa
nossa grande alegria"

Pablo Neruda ("As uvas e o vento")

11.3.11

os únicos em todo o universo

“Pinçou da memória um passeio com Miguel pela costa, no outono, muito antes que o furacão dos acontecimentos virasse o mundo de pernas para o ar, na época em que as coisas ainda eram denominadas por nomes conhecidos e as palavras tinham um único significado, quando povo, liberdade e companheiro eram apenas isto, povo, liberdade e companheiro, e não se haviam ainda transformado em contra-senhas. Tentou reviver aquele momento, a terra vermelha e úmida, o intenso odor das matas de pinheiros e eucaliptos, cujo tapete de folhas secas amaciava, depois do longo e cálido verão, e onde a luz acobreada do sol se filtrava nas copas das árvores. Tentou resgatar o frio, o silêncio e a preciosa sensação de serem os donos da terra, de ter 20 anos e a vida pela frente, de se amarem tranquilos, inebriados pelo aroma do bosque e pelo amor, sem passado, sem suspeitar do futuro, com a única e incrível riqueza daquele instante presente, em que se olhavam, se ouviam, se beijavam, se exploravam, envolvidos pelo murmúrio do vento entre as árvores e pelo rumor próximo das ondas batendo nas rochas ao pé da falésia, estalando num fragor de espuma perfumada, e eles dois, abraçados dentro do mesmo poncho, como siameses na mesma pele, rindo e jurando que seria para sempre, convencidos de que eram os únicos em todo o universo a ter descoberto o amor.”

(A Casa dos Espíritos - Isabel Allende)

2.9.10

sem silêncios

“O silêncio é reacionário.”
(Jean Paul Sartre)

Bem lembrou o Estadão hoje. Há 50 anos Sartre e Simone de Beauvoir visitavam São Paulo. Preciso ler "Segundo Sexo". "A Náusea" também, mas pra esse falta ainda coragem.
Início do conteúdo

21.7.10

sobre a preguiça

É longo. Mas é lindo. Direto da cabeça de um gênio.

"Ah, se eu não tivesse passado de um preguiçoso! Como eu teria respeitado a mim mesmo! Ter-me-ia respeitado precisamente porque teria me visto capaz ao menos de preguiça, porque teria possuído então ao menos uma qualidade definida, da qual estaria certo. Pergunta: quem és? Resposta: um preguiçoso! Teria sido verdadeiramente muito agradável ouvir chamar-se assim. Tu estás então definido de maneira positiva; há alguma coisa então a dizer da tua pessoa... “Um preguiçoso!” – É um título, é uma função, é uma carreira, meus senhores! Não riais disso; é assim. Eu teria sido, assim, por direito, membro do primeiro clube do universo e teria passado todo o meu tempo a me respeitar. Conheci um sujeito cujo orgulho era ser entendido em Laffitte. Considerava essa qualidade uma virtude muito preciosa e não duvidou jamais dela. Morreu com a consciência não somente tranqüila, mas triunfante mesmo, e teve razão. Eu teria nesse caso escolhido uma carreira: teria sido um preguiçoso e um glutão; não um guloso vulgar, mas um gozador, interessando-me por “tudo o que é belo e sublime”. Que pensais? Há muito tempo sonho isso. “O belo e o sublime” pesam como chumbo sobre a minha nuca desde que fiz quarenta anos. Desde que tenho quarenta anos!Mas antes? Teria sido muito diferente! Teria logo encontrado uma forma de atividade adaptada ao meu caráter: por exemplo, beber à saúde de todas as coisas “belas e sublimes”. Teria agarrado cada ocasião de beber à glória “do belo e do sublime”, depois de ter, previamente, deixado cair uma lágrima na minha taça. Eu teria então tornado todas as coisas “belas e sublimes’, teria descoberto o “belo e o sublime” até nas torpezas mais incontestáveis; teria derramado prantos tão abundantes como aquele que deixa escapar uma esponja. Um pintor, por exemplo, compôs um quadro digno de Guê; logo, bebo à saúde desse pintor , porque amo tudo o que é “belo e sublime”. Um poeta escreveu “Como agradar a cada um”, e eu bebo depressa à saúde de cada um, porque amo o “belo e sublime”. Isso me valerá o respeito geral; exigirei esse repeito; perseguirei com minha cólera aquele que mo recusar. Vivo pacificamente, morro solenemente. Não é admirável? Não é delicioso? Teria deixado crescer um ventre tão opulento, teria erguido para o alto um nariz tão gorduroso, teria ornado meu rosto com um queixo tão vasto, que todos ao me verem teriam exclamado: “Eis aí um ser bem real, um ser positivo!”. Como quiserdes, mas é bastante agradável ouvir dizer tais coisas a seu respeito em nosso século, tão essencialmente negativo...”

(Fiodor Dostoiévski - Memórias do Subsolo)

1.7.10

os mendigos

Surge então a questão “Por que se despreza os mendigos?”... Pois de fato são desprezados, universalmente. Acredito que seja apenas porque não levem uma vida decente. Na prática, ninguém quer saber se o trabalho é útil ou inútil, produtivo ou parasitário, o único requisito é que seja lucrativo. Qual o sentido que há nas discussões modernas sobre a energia, a eficiência, o serviço social e coisas do gênero, senão “Ganhe dinheiro, ganhe-o legalmente e muito¿”. O dinheiro tornou-se a grande prova da virtude. Nesta prova os mendigos são reprovados, e por isso são desprezados. Se se conseguisse ganhar dez libras por semana mendigando, a mendicância se tornaria imediatamente uma profissão respeitável. Um mendigo, observado do ponto de vista realista, é simplesmente um homem de negócios que tenta ganhar a vida, como outros homens de negócios, do jeito que der. Não vendeu a honra, não mais do que a maioria dos homens modernos. Simplesmente cometeu o erro de escolher um negócio no qual é impossível enriquecer.

(George Orwell, Na Pior em Paris e em Londres)

Terminei de ler ontem. Livro fantástico. Dos tempos em que George Orwell viveu nas ruas, pensões baratas e albergues de Paris e Londres, nos anos 20.

Dá uma vontade monstra de sair caminhando pelas duas cidades, encontrando todos os cantinhos ou o que sobrou do que ele descreve. E dá uma vontade imensa de ser jornalista também.

18.6.10

bosques e livros


Começar a ler foi para mim como entrar num bosque pela primeira vez e encontrar-me, de repente, com todas as árvores, todas as flores, todos os pássaros. Quando fazes isso, o que te deslumbra é o conjunto. Não dizes: gosto desta árvore mais que das outras. Não, cada livro em que entrava, tomava-o como algo único.

(José Saramago ao El País Semanal, Madrid, 29 de Novembro de 1998)

Estranha a relação que a gente estabelece com escritores. Nem conhecemos, nunca vimos, muitos já se foram, mas é como se houvesse um elo entre aquele que escreve e aquele que lê.

Pelo menos os livros são imortais, e isso importa muito.

16.6.10

um país estranho

No escuro ele entrou no país estranho, e como era estranho, de entrada difícil, de repente perigosamente difícil, depois às cegas, mas feliz, instalou-se satisfeito; liberto de todas as dúvidas, todos os perigos e todos os receios, soltou-se, agarrou-se, agarrou-se mais forte; afrouxou para agarrar de novo, absorvendo todo o antes e todo o porvir, chegando ao começo da felicidade iluminada no escuro, mais perto, mais perto, cada vez mais perto, até ultrapassar toda a esperança, mais longe, mais longe, mais alto e mais alto até chegar repentinamente à felicidade escaldante.

De Um país estranho, ultimo dos Contos de Ernest Hemingway, em três volumes. Recomendo muito. Em algumas histórias tu entende claramente porque o Hemingway foi e é o Hemingway.

2.3.10

no embalo dos clássicos

A coisa mais difícil é amar a vida. Amá-la mesmo quando estamos sofrendo porque a vida é tudo. A vida é Deus, e amar a vida é amar a Deus.

Essa é a frase com que termina Guerra e Paz (1956), dirigido pelo King Vidor, baseada no clássico do Leon Tolstoi. Antes de ver o filme, duvidava um dia conseguir ou mesmo ter ânimo para ler o livro. Pelo que parece, são umas 1200 páginas - só de épico são três horas e meia. Mas, depois de assistir a megaprodução no domingo, me deu uma imensa vontade de encarar todos os volumes de obra...


O fime em si é bom - Audrey Hepburn, Henry Fonda e Mel Ferrer e os figurinos bonitos como pede o gênero -, mas nada de surpreendente. Acho que o melhor mesmo são os diálogos, que fazem o tempo passar muito mais rápido e te faz nem perceber o tempo.

Enfim, hoje já andei pesquisando o preço do calhamaço. Como ultrapassei a cota de gastos para a atualidade, vou deixar a extravagância para mais tarde. Mas fica como determinação. Em algum momento em tenho que ler Guerra e Paz.

27.2.10

missão parcialmente cumprida

Na ânsia de tentar preencher todas as minhas lacunas livrísticas (tarefa impossível, eu sei), avancei alguns passitos nas últimas semanas. Vieram fazer parte do meu lar Vigiar e Punir, do Foucalt, Dez Dias que Abalaram o Mundo, do John Reed (por incríveis três reais na Paulista) e a aquisição do dia, Na Pior em Paris e em Londres, do George Orwell, que há pelo menos três anos eu me coçava para comprar. Leve e agradável sensação de dever cumprido por ora. Coragem agora para ingressar no universo foucaultiano...

1.2.10

enquanto inspiração maior não vem

"No Grande Hotel, encontrei Mercedes no meu quarto.
“Lavei tua roupa suja e botei para secar no banheiro”, disse Mercedes. Cuecas, camisas e meias estavam dependuradas na barra de alumínio que segurava a cortina do box do chuveiro.
“Para encontrar a roupa tive que revistar as tuas coisas. Você sempre põe a roupa suja dentro da mala¿”
“Você está muito bonita hoje.”
“Bonita¿ Eu¿” Mercedes caminhou na direção do banheiro, para se olhar no espelho. Fui atrás.
“Estou bonita nada”.
“Está linda”.
“Como foi em Quijarro¿”
“Fuentes se encontrou com o outro homem que estou procurando. Rafael. Amanhã vão se encontrar novamente em Porto Suárez.”
“Eu fico melhor com o cabelo solto ou preso¿”
“Solto, sem laquê.”
“Eu já não uso mais laquê.”
“É assim que eu gosto.”
“Você gosta mesmo de mim¿”
“Muitos anos antes de Cristo havia na Grécia um poeta, Arquíloco, que dizia: ‘Tenho uma grande arte: eu firo duramente aqueles que me ferem’.”
“Às vezes você parece maluco. Não sei do que você está falando.”
“Minha arte é maior ainda: eu amo aqueles que me amam.”
Acendi um Panatela. Deitamos na cama.
“Numa história que li, um homem condenado à morte está no patíbulo para ser enforcado e quando o carrasco lhe coloca a corda no pescoço ele pede que lhe dê mais um minuto de vida. ‘Para que queres mais um minuto de vida¿, perguntou o carrasco. Responde o condenado ‘Quero pensar ainda um minuto na Belle Elize’.”
Começamos a brincar um com o corpo do outro, usando as mãos e a boca, entretendo-nos mutuamente, provocando e estimulando o desejo da carne, com a urgência das pessoas acossadas.
“Você também suplicaria por um minuto mais de vida para pensar numa mulher¿”
“Ele era um marinheiro. A Belle Elize era uma escuna, na qual ele navegava pelos mares do mundo."


(Rubem Fonseca - A Grande Arte)

6.11.09

não escrever

Ando meio sem tempo e, principalmente, sem ânimo para escrever no blog. Poderia tentar encontrar algum tipo de “inspiração” para discorrer sobre um assunto qualquer mas, em vez disso, vou deixá-los com esse trecho do Vida de Escritor, do Gay Talese. Enfim pareço ter achado a justificativa perfeita para não escrever sobre as coisas que realmente não valem a pena...

“Por que não estou escrevendo esse livro mais depressa¿ Estarei sofrendo de ‘bloqueio de escritor’¿ Não, você não está sofrendo ‘bloqueio de escritor’, está apenas mostrando bom senso ao não publicar nada por enquanto. Você está mostrando consideração para com os leitores ao não lhes dar texto ruim. Muitos escritores deviam fazer o que você está fazendo – NÃO ESCREVER. Já existe muito texto ruim por aí, para que mais¿ As estantes dos Estados Unidos estão cheias de livros de segunda classe de escritores de primeira. Muitos deles têm um público cativo e por isso os editores publicam suas besteiras. Eles publicam tudo o que vende. Mas os escritores deviam ficar bloqueados. Seria uma coisa boa para a reputação deles, para os custos de produção das editoras e para os padrões do público leitor em geral. Deveria haver um prêmio Nacional de literatura oferecido anualmente a certos escritores por NÃO ESCREVER.”

8.10.09

ainda do russo

Encontro

A neve cobre os caminhos,
se acumula nos telhados.
Saio na rua e adivinho
o teu rosto do outro lado.

A sós, com teu sobretudo
de outono, mas sem chapéu
combates o próprio medo,
e a neve mordes nos lábios.

As árvores e os cercados
se afastam da noite fria.
Debaixo da tempestade,
sei que me esperas na esquina.

A água do cabelo passa
até as mangas da malha.
E brilham em tuas tranças
pequenas gotas de orvalho.

Uma só mecha te basta
a clarear-te o semblante,
toda a silheta, a echarpe,
teu velho e pequeno manto.

Úmida neve nos cílios,
os olhos tristes e baços,
o teu semblante unitário
compõe um bloco maciço.

Como se um cinzel, deixado
no antimônio, em solução,
te houvesse redesenhado
dentro do meu coração.

Tuas linhas não se arredam
de mim, pois calaram fundo.
Não me importa se de pedra
bate o coração do mundo.

E duas vezes se vai
revelando a noite rara.
Entre nós dois já não sei
demarcar limites claros.

Quem somos, como saber
donde chegamos, se ausentes
desse mundo hão de restar
palavras irrelevantes?

Boris Pasternak
(Tradução de Zoia Prestes)